E daí eu roubei dois pacotes de
post-it da gaveta do escritório que às vezes eu trabalho. Primeiro o rosa,
quadrado, depois o azul, retangular. O que me aliviou um bocado. O dia tinha
sido azedo, e as pessoas que nele existiram, quase todas insuportáveis. Principalmente
o colega que insistiu para que fôssemos tomar um café quando eu não tinha a
menor vontade e nada para falar com ele. Digo às vezes porque passo a maior
parte do tempo no andar de cima colando etiquetas coloridas em livros que não
vou pegar emprestado. Livros em espanhol, catalão, galego com todos os seus x, num
setor da biblioteca que me parece mais um museu. Há semanas me questiono sobre
as intersecções entre ambos, embora lá tenha livros de todas as épocas e
milhares de lançamentos. A exaustão da oferta. Já pedi que ascendessem mais
luzes para que eu pudesse achar as obras que devo etiquetar com maior
facilidade, mas aparentemente vão continuar contendo despesas neste quesito.
Disse para minha chefe que traria daqui por diante uma lanterna daquelas que os
mineradores utilizam, uma frontal, a fim de facilitar a labuta. Ela calça
botinas que os punks costumam usar. Seis horas do meu dia colando etiquetas
coloridas em livros que não vou pegar emprestado e que raramente vejo alguém
manusear. Gosto da rosa embora o meu forte não seja ciências sociais. Também já
quis subtrair um rolo mas não tive coragem. Faria o quê com ele? Várias coisas,
certamente passaria horas arquitetando utilidades para o novo brinquedo. Forjaria
alguns ready made, que não pertencem a ninguém e poderia antever os resultados
com júbilo. Locupletar-me-ia com a pompa que somente uma mesóclise permite ao
imaginá-los prontos. Plagearia François Morellet e guardaria segredo pour
toujours. Falaria em inconsciente coletivo. Outrora eram balões que me encantavam,
coloridos, daqueles que quando enchidos pode-se fazer cachorros, salsichas,
cachorro-salsicha. Vesti uma cadeira com eles, cadeira de ferro, piramidal, que
lembra aquelas dos anos 60. Ficou até mais confortável. Me senti artista, mas
não terminei a obra. Esses balões eram caros. Também tive a oportunidade de
roubar um pacote quando há alguns anos trabalhei preparando um buffet para uma
festa de final de ano de uma empresa, comida boa, evento regado a champagne. Roubei
um pacote e aquela bomba que permite assim fazer as salsichas com eles, soprando
é impossível. Os balões estão ali dentro do meu armário de ferro vermelho,
velhos, devem estourar ao menor sopro, mas para vestir móveis talvez ainda
sirvam. Dei balões e emprestei a bomba para algumas crianças que vieram a minha
casa, mas já não gosto mais de crianças. Faço embalagens de presentes arrojadas,
atadas com eles, coloridamente. Mas perdi o gosto de dar presentes. Do lado da
cadeira de ferro tenho uma cesta amarela de plástico, quadrada, cheia deles.
Para alguns amigos que quando vejo, esqueço de entregar. Acomodo-me entre
estantes para etiquetar, roboticamente. Minha chefe me disse um dia que faço
perguntas inteligentes, quase sempre ela deixa para responder depois, e
esquece. Conquistei minha autonomia dessa maneira. Quando titubo, espero. Pode
demorar uma semana até que me ilumine e decido por algo. Enquanto isso etiqueto
outros. E vou indo. Os livros dessa vez são limpos e bem cuidados, em nada
lembram aqueles da biblioteca da escola municipal que trabalhei aos 22 anos, livros
manchados de terra, telúricos. Digitais, tatu e ranho e o público leitor desta
que frequento hoje não precisa se esconder para o crime da leitura como faziam
as crianças de ascendência alemã, que deveriam sobretudo trabalhar no campo,
liam à luz de velas em 2004. Por dois dias colhi uvas num verão e lembrei delas
enquanto minhas costas doíam. E enquanto chovia, em minha primeira manhã de
trabalho na vinha, desesperava. Não fazia trinta minutos que havia começado. Água
que entra no olho, luva que diminui o tato. De meus dedos não arranquei nenhum
pedaço. Naquela escola tinha criança com dedo pela metade e a um menino que se
bem me lembro se chamava Jonas, faltava o antebraço. Trabalhando no moedor de
cana, quando viu sua mãe aos gritos tranquilizou-a; não chora mãe, vai crescer
de novo, contavam todos. Jonas me pedia para atar seus cadarços na hora do
recreio. A primeira vez fiz com muita pena, depois acostumei. Mentira, nunca
acostumei. Quando decidi abandonar a cidade e o emprego na escola, não me
despedi das crianças, faltou-me coragem. O Marcos da quinta série foi quem me
ensinou a jogar xadrez, escondido do diretor. Eu fechava a porta da biblioteca
e pronto. Marcos era de estatura pequena e tinha cabelos castanhos como eu,
numa terra de loiros. Depois disso ensinei no mínimo quatro pessoas a jogar
xadrez. Xadrez módico, claro. Já ajudei nos deveres de casa uma campeã, que
disputou mundial na Grécia ano passado. A menina mais chata que conheci. Falei
do Marcos pra ela, ela nem bola. Não lembro seu nome. Agora me pergunto se vão
se dar por conta dos post-it que esquivei. E se? Digo que não. E nem vou ficar
elocubreando porque é provável que nada percebam. Torci meu pé há quinze dias.
Na verdade ele estalou ao contato do solo frio. É cada coisa que me acontece.
Trincar osso ou cartilagem com choque térmico. Vou ter que fazer uma
radiografia, marquei hora para segunda. Outro dia no restaurante fiquei com uma
vontade danada de levar pra casa uma colher de sobremesa que não tinha nada de
especial. Daí enfiei disfarçadamente o talher dentro de um daqueles pãezinhos
que tem gente que chama cacetinho, outros pão de trigo e por aí vai, deu certo,
daria até para colocar duas, mas não ousei. Antes do almoço agredi verbalmente
uma velha chata e insistente que me fazia perguntas as quais para responder eu
deveria forçar muito a memória e não tinha disposição para isso. A culpa do roubo
da colher deve ser dela. Praticamente a cada manhã, respiro, olho e nutro a
minha raiva. Regozijo-me quando me irrito e me sinto capaz de me deixar
explodir de tão sucetível. Reatividade cem por cento aguçada. E não piro. Gostei
de ver meus pés radiografados, em material bem diferente do que aquele de
antes, agora é papel plastificado. Gosto do plástico. Observei cada dedo e me
perguntei se um dia aprenderia a furtar com eles. Tenho um amigo em que numa
dessas tardes em que não se tem nada para fazer, foi a uma loja metida à besta
e, entres idas e vindas ao provador, vestiu ou melhor, empilhou dezesseis
cuecas. Ninguém percebeu. Fico imaginando o tamanho da bunda dele ao sair da
loja. Chegando em casa fez o striptease mais demorado para a namorada.
E daí no final daquela primeira
tarde em que trabalhei em meu novo escritório, subtraí o rolo de fita rosa.
Bonito e quase novo. Nessa hora minhas sinapses puseram-se a fabricar minha
absolvisão. Alibi. Nenhum pingo de mentira no feixe das possíveis verdades que
busco. Caso alguém através da janela tenha visto meu gesto, digo que caiu
dentro da minha mochila sem querer. Agora que o possúo consagrarei-me ao certo
a construir algo efêmero e invendível. Quando, não posso precisar. Por semanas
a fio condenaram-me a este escritório que divido com uma senhora, simpática mas
destemperada. Ar condicionado a mil e eu derreto. Ela ainda insiste para que
fechemos a porta. Cozinho. Antes de entrarmos em férias disse que para mim era
muito difícil trabalhar numa sauna. Ela provavelmente já esqueceu. Agora brinco
de deus do acervo. Extraordinária alegria fugaz. A tarde toda trabalhando no
sistema interno da biblioteca, daí de vez em quando faço pseudo-devolução de
livros que aprecio e que conservo em minha casa. Necessito de um cotidiano
subversivo. Prometo que vou devolvê-los um dia. Durante as três últimas semanas
não agredi quase ninguém. Quase. Não perguntei até hoje à garota que mora
comigo há um mês o porquê dela insistir em não tirar nunca o lixo da cozinha.
Nem disse para ela cinicamente que embora eu alugue um quarto minha casa não é
pousada. Tento comunicar através do exemplo, quando está nas paragens lavo,
varro, esfrego e tiro o lixo, tudo com muito barulho. Não implico mais com os
humanos, I let it be. Nem com aqueles de mórbida carência que, embriagados
tentam roubar carinhos. Pergunto-me qual é a formula para não ver mais estas
cenas. Ficar em casa? Não convidar mais amigos para noites de vinho e pizza? Fechar
os olhos? Só peço que não me toquem por ora. Há uns dois meses tentaram roubar
minha bicicleta branca que foi presente de um amigo que foi morar lá perto do
oceano índigo, numa ilha que não quero visitar. Amarelo é sua cor favorita.
Poderia pegar um rolo de fita para ele. Amarelo –Literatura. Batizei-a
Resignação pois não tem marchas, quebraram há muito e agora já tem um freio a
menos e preciso sem demora comprar um cadeado novo. Alguém que acho que amo do
meu jeito me convidou para passar a virada do ano em Bruxelas, não fui. E nesses
dias bonitos de sol e eu de férias em casa, destilo teoria literária
arquitetônica com a ajuda daqueles livros que não devolvi, tenho ideias mancas
a espera da força, leio meu silêncio, disfarço intrépida busca verbal,
solilóquio e tenho medo de 2012.
(publicado na Arte & Letra estórias, letra P, Verão 2012)
(publicado na Arte & Letra estórias, letra P, Verão 2012)