sábado, 1 de setembro de 2012

Flor de delicadeza


Encontraram-se no final de suas respectivas aulas, e B. propôs à M. algo que poderia ser assim interpretado:
«Que tal entabularmos um papo?», foram. Imagino que se acomodaram ao sol, que se encostaram em algum muro ou que se sentaram em algum degrau.
Conversa fluida, veio a rafa «Tem um mercado bem na frente da minha casa, podemos comprar alguma coisa e almoçarmos juntas», disse M.. Foram. Mediana distância driblando os côcos dos cachorrinhos das senhoras gordas que adornavam sem falha as calçadas. Senhoras gordas portadoras e vetoras daquela tristeza própria dos gordos.
Aterrador desgosto passageiro. Não havia como manter a elegância.
Fizeram salada multicolor. M. não comia carne no restaurante universitário, só a da Mama, presumia B. M. só beliscava. Leve e delicada. B. que era mais alta e robusta, a acompanhava, e por meses a fio ao meio dia só comia saladas, lá onde só vendiam croudités. Depois B. tremia de fraqueza e fome antes da hora. Porém à noite rejubilava-se com a ternura da tal companhia diurna. E por meses enfileiravam-se meios-dias. B. emagreceu. Mas todavia ao lado de M. exibia aquela mesma fragilidade dos gigantes. E com prego e martelo B. acrescentou dois furos em seu cinto, primeiro um e dentro de poucas semanas o outro.
Comeram no terraço, fumaram dois cigarros percapta e tomaram “jus de pomme”, quiçà à Luis XIII. Esquececeram-se por instantes de seus respectivos tédios provisórios sem nunca elogiarem o silêncio. Eram frases seguidas de frases, pontuadas por lépidas respirações. Foi assim desde o princípio. Quando ainda fazia calor e antes de irem à gare, iam à praia, sentavam-se nas pedras, fumavam cigarros. Literatura. Falavam de literatura. De qualquer maneira quem quiser aproximar-se de B. e permanecer em sua vida necessita falar de literatura. Falavam também de línguas. M. era fonoaudióloga.
Três da tarde, vento e sombra. M. buscou um echarpe e repousou com doçura nas costas da visita que tilintava de frio. Flor de delicadeza. Folhas secas na sacada. Pessoas chegam e logo se vão. Tráfego na sala. A moradora mais antiga na casa era meio hippe e não usava nunca desodorante, também condenava a prática na vida dos outros.
Conversa muito boa, cidade já escura, B. resolve ficar para dormir. Inútil resistir à evidência estarrecedora. Os trens estavam sempre em greve, de ônibus levaria horas, e na casa de B. só havia enfado. Hoje ela sinceramente não sente saudade dessa época. 
A anfitriã oferece à B. do vinho feito por seu pai à 17,5%. E lá se foram uma, duas garrafas. E derramaram juntas, por horas, violentas nostalgias. Dores, rancores, alegrias, histórias chatas de uma infância que, enquanto uma conta a outra faz de conta que escuta. Afinal, são detalhes tantos que embora paciência exista, o fio acaba emaranhando. Riram. Devem ter comido chips e azeitonas.
Noite muito fria, visita não consegue dormir de tão gelada. Cama de ferro lembrava aquelas de hospitais. A moça que dividia o apartamento com M. teimava em deixar a janela da cozinha aberta. Uma espécie de eterno cio balsaquiano. B. levanta-se, e ao constatar que a janela era tão alta e que não havia cabo de vassoura por perto, decide acordar M. Anfitriã vai buscar o aquecedor. Aqueceram-se.
(De como Sávio levou um chiffre cor-de-rosa).

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