Era uma vaca sem sino, com um sapo na mochila e um poema de Manuel de Barros no bolso, aquele em que o menino ganhou olhar de pássaro. Na expectativa de que teria a Getúlio só pra ela. Não percorria há muito aquele caminho, queria sentí-lo a cada passo, reconhecer suas reentrâncias, trazer à tona suas memórias e quedar-se a sós com seus pensamentos. A pouco estava numa casa que, embora tenha vivido por dezessete anos, já não mais a reconhecia. Levara muito tempo pra achar até mesmo uma tomada no quarto que dormira por anos. Riu-se ao lembrar dos bilhetes que sua mãe deixava para a faxineira sobre a mesa de jantar: “Limpa direito a cozinha, que tá dura de barata” e “Não esqueça de tirar as telhas de aranha”. Dessa vez não havia mais nada sobre a mesa, rir-se não era possível. Nela somente traços da solidão e do abandono requisitado, uma taça de vinho da noite anterior, uma xícara de café esquecida alí pela manhã. O pai da vaca morava agora sozinho, e ela explodindo de pena não via a hora de sair dali. Voltar o mais breve para o seu mundo, ou ao menos ficar sozinha no trajeto de volta à casa de sua mãe, assim poderia trazer em pensamentos o mundo da época que mais a agradava ou que ao menos não a feria. Mochila nas costas e um tanto pesada, levava alguns livros consigo também, preparada para encarar a Getúlio e poder pensar. Tudo por água. Ofereceram à vaca, carona.
Luana Azzolin
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